Devoção que transforma

De que nos serve uma vida devocional? Há uma pista, ao menos uma parte da resposta a esta pergunta, na jornada de Jacó. Um jovem atormentado por uma busca impossível, de alcançar uma benção que, conforme sustentava a lei, não lhe pertencia. Um homem perseguido pela culpa de um engano, de uma traição. Um ser humano apavorado por uma antiga ameaça de morte, feita pelo seu próprio irmão, a quem enganara. Um pobre, preso pelas perdas e saudade insuperável dos pais que se foram enquanto percorria o tempo do seu exílio. A dor das relações desfeitas e que ele já não podia reconstruir. Por vinte anos padeceu, lutou, experimentou o cuidado de Deus, sofreu e se alegrou, ganhou e perdeu, na caminhada da vida.

Mas um dia, como de resto acontecerá com todos nós, seria confrontado com a sua própria realidade, com seu medo mais profundo. No vale do Jaboque, às margens do riacho, noite escura, sem luar, depara-se com a presença verdadeira, iniludível e ao mesmo tempo misteriosa do Senhor.

Decidido, recusa-se a desistir da benção que sempre quis, benção que, no fundo de sua alma, sentia ser, também, para ele. A luta é brutal, penosa, demorada. Dura toda a noite. Dói. Fere. Marca. E o pior de tudo, desmascara. Faz cair na areia das margens do riacho a ilusão construída, o engano consumado.

Qual o teu nome? É a pergunta penetrante como faca, que Deus lhe dirige, sem aceitar o engano ou a farsa, a dissimulação ou as desculpas vãs, como resposta.

É para isso que serve a vida devocional! Ela nos leva ao deserto, à solitude e ao silêncio.

Nos conduz às margens das águas da vida, onde podemos vislumbrar a presença de Deus. Presença que, percebida, considerada, acolhida, nos confronta. Impõe-nos um estado de despojamento, um retirar das fantasias, das máscaras, das falsas existência e identidade. Retira de nós os amuletos e as muletas do nosso viver. O ego, o sucesso, as aparências, a conta bancária, o muito saber, o vigor da juventude ou a experiência da velhice, nada disso faz sentido na presença do Eterno, que perscruta corações.

Qual o teu nome? Insiste o Pai, querendo ouvir de nós somente a verdade, sem floreios, sem parentescos, apenas o nome que designa quem somos, apenas nós mesmos, desnudos, diante de Deus.

Jacó é o meu nome! – respondemos trêmulos – Sim, enganadores, usurpadores. Covardes, falsos, cheios de justificações próprias, cheios de tramas e estratégias para não nos olharmos diante do espelho.

Mas a presença do Senhor ilumina toda treva.

É espelho da alma. Revela as profundezas abismais da nossa escuridão e nos des-ilude das mentiras do nosso viver. Seu Sopro Eterno remodela e refaz. Reescreve nossa história. Muda o nosso nome, dá-nos um novo significado. E, então, voltamos à vida, pois a vida segue. Voltamos às urgências e necessidades da luta do viver. Mas já não somos mais os mesmos. Mancamos, sim, mas já não somos trapaceiros, já não carregamos o mesmo nome. Ao contrário, rebatizados pelo Altíssimo, nobreza e honradez nos designarão. Já não seremos Jacó, Israel seremos! Príncipes e princesas no seu reino. 

Por Cayo César Santos – Presbítero da Igreja Presbiteriana do Planalto, membro do Centro Cristão de Estudos e colaborador na área de mentoria do Projeto Vocatio, em Brasília/DF. Autor dos livros “Século I: O Resgate” e “Século I: A Reconstrução” Ed. Ultimato, obra que recebeu o Prêmio Areté/2019, na categoria ficção/romance.
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